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Sobre sombras

Escrevo coisas que ninguém percebe, nem eu

Escrevo coisas que ninguém percebe, nem eu

30
Out24

A pós-vida - Parte 3

Cá estamos de volta para a parte 3. Sei que estavam muito ansiosos, mas a espera é o que gera interesse. Aquela ansiedade saudável de descobrir o que se vai passar com o nosso amigo Lírio. Caso estejam aqui pela primeira ou segunda vez, podem ler a parte 1 e 2 aqui: 

https://sobresombras.blogs.sapo.pt/a-pos-vida-parte-1-8938

https://sobresombras.blogs.sapo.pt/a-pos-vida-parte-2-9089

Aqui vai a parte 3:

 

Novo estalar de dedos. Desta vez, estava a família toda à mesa, na mesma casa do cenário anterior. Lírio e a irmã eram mais velhos, já adolescentes. A mãe e o pai estavam lado a lado na mesa, em frente aos filhos. A mãe abriu uma panela e serviu os quatro pratos. O vapor inundou a sala e Lírio, o morto, não o adolescente, pareceu sentir a o aroma da refeição preparada pela empregada doméstica. A mãe e o pai tinham empregos muito importantes e pouco tempo para as lidas da casa, deixando essa responsabilidade a uma senhora nos seus sessenta anos, que era como se fosse parte da família.

— Quanto tiveste no teste de matemática, Lírio? – perguntou o pai, dando uma garfada.

— Oitenta e seis por cento. Fui a melhor nota da turma.

— No teste anterior tiveste noventa.

— Este era mais difícil. Mas fui o melhor da turma.

— Eu tive noventa e oito no teste de história! – gritou a irmã, interrompendo a conversa.

— Boa filha! Parabéns! – elogiou a mãe, mostrando a palma da mão à filha, para que desse um “mais cinco”.

O homem ia tirando notas enquanto monitorizava as reações de Lírio. Este encontrava-se a observar a cena em silêncio, cerrando os punhos e raspando os dentes uns nos outros, raivoso.

Voltando às imagens do passado, o Lírio adolescente bebeu o resto da água que tinha no copo, colocou os talheres de lado, sinalizando o fim da refeição, e arrastou a cadeira, levantando-se.

— Não vais comer tudo, Lírio? – disse a mãe.

— Não tenho fome. Vou para o quarto.

— Não vais não, a hora de jantar é para estarmos todos em família. – disse o pai na sua voz autoritária e rígida.

— Não quero estar à mesa. Estou cansado e quero ir para o quarto.

— Vais sentar-te aí e é já!

— E se não me sentar?

O pai de Lírio limpou a boca com o guardanapo, daqueles de pano como nos restaurantes, não os descartáveis de papel que eram demasiado corriqueiros para a família Torres Nogueira. Mastigou o que faltava do bolo alimentar, bebeu um pouco de vinho tinto e ignorou o filho. Lírio riu-se sarcasticamente e subiu as escadas para o segundo piso da casa, fechou a porta do quarto com violência e trancou-a. Ajoelhou-se perto da cama, afastou parte do edredom que tapava a secção lateral e retirou uma caixa. Abriu-a. Tinha vários acessórios de tecnologia: cabos, auriculares e adaptadores. Tirou o fundo falso e revelou um saco de plástico transparente com marijuana, mortalhas, papel e um isqueiro. Enrolou um charro. Abriu a janela e acendeu-o. Puxou com a máxima força enquanto apreciava as luzes da cidade que contrastavam com o breu do céu. Deixou cair uma lágrima que se misturou com o fumo que desvanecia na noite. Um batido de tristeza e dopamina era a receita encontrada por Lírio para ultrapassar a frieza e exigência dos seus pais.

O ser vivo mágico voltou a repetir as mesmas questões. Todo este processo estava a ser esmagador para Lírio. Além de, obviamente, ainda estar a habituar-se à existência daquele mundo para além do dos vivos, era um exercício custoso ponderar que tipo de atitudes deveria ter tomado perante constrangimentos ou dificuldades na vida. Quando não se sentia bem, ou tinha algum tipo de desafio, Lírio refugiava-se no álcool, na droga ou no jogo. Muitas vezes, em todos ao mesmo tempo. Por fim, perguntou a Lírio algo distinto.

— O que acha que os outros poderiam ter feito diferente?

Lírio não soube responder. O homem continuou a realizar mais apontamentos, como um estudante numa aula a apontar as explicações do professor. Outro estalar de dedos e tudo mudou novamente. Lírio não deixava de ficar surpreendido com as imagens vívidas que observava, como se de facto tivesse viajado no tempo. Lírio já era adulto e estava a chegar a casa embriagado. Cambaleava enquanto retirava as chaves do bolso. Após seis tentativas, conseguiu enfiá-la na fechadura e abriu a porta. No interior, estava uma mulher de braços cruzados.

— Outra vez, Lírio? A sério?!

— Que foi?

— Preciso de explicar?

— É fim-de-semana, fui arejar a cabeça.

— E ontem? E no resto dos dias da semana? E nas outras?

— Não me massacres a cabeça, estou a sofrer para mijar.

— Estou farta desta porcaria Lírio, chegas todos os dias a casa de manhã podre de bêbedo, dormes o dia todo, gastas o dinheiro em álcool e em sei lá mais o quê, não ouves o que te digo, não me ligas nenhuma.

— Blá blá blá.

— Eu mato-me a trabalhar! Às vezes faço turnos de vinte e quatro horas, chego a casa e está tudo uma desgraça, o chão todo vomitado, beatas em todo o lado! Não aguento mais Lírio, não aguento.

A mulher, aparentemente a namorada ou esposa de Lírio, virou costas e entrou no quarto. Lírio foi urinar e começou a ouvir o barulho de armários e fechos a abrir. Guardou o pénis na sua gaveta, sem o sacudir, deixando a roupa interior molhada e fétida. Disparou para o quarto, ainda a perder o equilíbrio, tanto no seu corpo como na vida, agarrou-se à parede e espreitou. A parceira estava a arrumar roupa e pertences pessoais em malas.

— Que estás a fazer?

— Vou-me embora. Para mim, já chega.

— Raquel, tem calma.

— Deves estar a gozar comigo. Calma tive eu estes anos todos!

Lírio sentou-se. Via o armário vazio a duplicar, o quarto agitava-se como num treino para astronauta. Levou as mãos à cara, com a esperança de ficar sóbrio para poder conversar com Raquel. Inspirou e expirou de forma acelerada, as mãos cheiravam a urina e uísque.

— Fica. Por favor.

— Acabou, Lírio. Já te dei muitas oportunidades e tu continuaste sempre nessa vida.

— Eu preciso de ti.

— Não, tu precisas do vinho, da cocaína e do poker.

— Raquel, eu amo-te, fica, por favor.

Raquel ignorou as súplicas de Lírio, que estava de costas sem conseguir olhá-la nos olhos. Reviu se não faltava nada seu e saiu de casa sem se despedir. Lírio deitou-se e fechou os olhos com o desejo de que a escuridão durasse para sempre.

— Mentiste-me. Estou no inferno. Não quero ver mais coisas tristes, já chega. Já sei que sou uma pessoa de merda e que afasto toda a gente. Ninguém gosta de mim. Já sei.

— O objetivo de revermos estes momentos é para o senhor Lírio refletir sobre…

— Refletir, refletir, refletir, porra lá para as reflexões e os sentimentos e tudo. Quero morrer em paz, deixem-me morrer.

— O senhor Lírio já morreu.

— Então deixa-me estar morto. Prefiro ver esta porcaria de luz a tremelicar do que reviver estas tragédias. A Raquel não mereceu o que eu lhe fiz.

O homem pigarreou.

— Bom, se o senhor Lírio não pretende refletir mais e está abalado, vamos mudar de estratégia.